Talvez no futuro tivesse orgulho de declarar que seu primeiro beijo tinha sido em um muro.
Era um dia de semana com cara de feriado. O tempo havia sido suspenso pelo mormaço. A cidade, os quarteirões e ruas estavam silenciosos e vazios. O asfalto recentemente umedecido secava com o calor. O vento carregava grãos de areia e, ao invés de refrescar, irritava.
Era um dia tão triste no litoral paulista, que estava lindo. Mais um dia salgado.
Numa guia estava sentada uma menina com vocação para anjo. Um anjo sem asas e com suor na nuca, culpa dos longos cabelos castanhos. E um anjo com pensamentos pouco divinos. Talvez a única coisa que ainda a identificasse com o céu fosse a vontade de voar. Não era de avião, asa-delta ou balão: tinha que ser sozinha, por si mesma, e sem nada para atrapalhar a vista.
Tomada a decisão, há dias tentava encontrar um modo de matar a vontade antes que ela a matasse. Pensou em bicicleta, patinete, skate, mas foi enquanto andava distraída que encontrou a solução: na casa do vizinho de praia, um par de patins sem dono, sem uso, que parecia estar esperando o momento do encontro desde seu nascimento. Não pensou duas vezes antes de bater palmas e pedir o favor, sem constrangimento: havia demorado muito para encontrar sua alma gêmea, e agora que a tinha tão perto, não abriria mão de jeito nenhum!
E assim começou o sonho. Não sabia andar com as rodinhas, tentaria por instinto. Já estava intrínseco em seu pequeno ser a ânsia de observar o mundo contra a brisa. E naquela tarde abafada, sanaria sua fome de liberdade. Primeiro colocou com dificuldade o pé esquerdo. Apertou os três fechos verdes um por um. O mesmo procedeu com o pé direito. Colocou as mãos na calçada e se ergueu, em uma respiração. Vacilou nos primeiros segundos, mas conseguiu manter-se de pé, imóvel. Alguns centímetros mais alta, permaneceu assim alguns minutos, para adquirir segurança. Arriscou o primeiro passo. Deu certo. Mas não era assim: pelo que via os outros fazendo, devia deslizar... O que pareceu impossível na rua mal asfaltada e em desnível.
Com um suspiro, caiu na realidade. Pessoas, ainda mais meninas como ela não conseguiriam nunca tirar o pé do chão sem o auxílio mecânico. Para evitar estragos, ia se sentar, tirar os patins e colocar o pé no chão. Até que passou um pássaro. Voando, bem longe. E dentro de sua mente, ela escutou o pássaro chamar seu nome, baixinho, em língua de passarinho, que ela sabia falar muito bem, visto que era um anjo perdido nessa terra quente e de asfaltos mal feitos. Então esqueceu que era humana e que tinha pensando em desistir e que devia andar com os pés. Deu um impulso com o pé direito para frente; bambeou, abriu os braços para recuperar o equilíbrio, deu impulso com o outro, e dessa vez chegou bem perto de cair. Continuou impulsionando mais alguns metros, em um vai-não-vai agoniante, até que chegou na calçada do outro lado da rua. Vitória. Por segurança colocou a mão direita na parede e foi se acostumando ao novo meio de transporte. Mudou o rumo. Queria ir à praia.
Em meia hora já adquiriu razoável domínio, e de quando em vez, tirava a mão da parede e seguia sozinha. Quando deu por si, estava longe da parede e de tudo, seguindo pela avenida da orla, com asfalto novo e liso. Não sabe quanto tempo andou, nem por onde. Só se lembra agora, da sensação magnífica de deslizar sobre o chão de braços abertos. Na hora, fechou os olhos e sorriu, sentindo grãos de areia prenderem no cabelo e baterem contra o rosto, sem incomodar. Lambeu o lábio sentindo o sal do mar. De repente, em um solavanco, os pés ficaram atrás do corpo: bateu em uma calçada. Antes de ter tempo de se defender de qualquer coisa, deu de cara em um muro amarelo. Os lábios virgens partiram-se imediatamente, junto com alguns dentes, e um, dois, vários botões de rosa vermelho vivo nasceram em seu rosto e outras partes do corpo.
Seria lindo, se não fosse trágico.
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